Lulaverso – Semana #01: terrorismo e alegria
A posse de Lula, a ministra com amizades milicianas, os tropeços da comunicação e os manifestantes em situação análoga a terrorismo.
Tudo isso e muito mais no resumo da primeira semana do governo Lula.
The following takes place between jan-02 and jan-08
Simbólico
Com uma cachorrinha vira-lata, uma criança negra, um líder indígena, uma catadora, uma cozinheira, um professor, um artesão, um operário, uma pessoa com deficiência e um perdedor fora do país, Luiz Inácio Lula da Silva recebeu a faixa presidencial pela terceira vez em sua vida. O ineditismo da transferência da faixa foi apenas mais um que marcou o ciclo político recente do novo presidente, que também é a primeira pessoa a ser eleita para o cargo político mais importante do país três vezes.
Com emoção, o primeiro discurso de Lula com a faixa no peito foi acompanhado de menções à volta da fome no Brasil e ao seu tempo na prisão. Mas, mais importante do que isso, houve a defesa daquilo que provavelmente será um dos desafios mais importantes de seu governo: o fortalecimento da democracia.
Ritualístico
Em geral, o ritual da posse ocorreu de forma tradicional. Teve velho colocando a própria vida em risco e desfilando em carro aberto e representante do fisiologismo orientando a posse no Congresso. Críticas à gestão anterior e defesa de pautas que já estavam na campanha também estiveram presentes, mas de forma menos discreta do que no passado — compreensível.
Revoga & nomeia
A cerimônia também teve espaço para a posse dos 37 ministros e ministras que trabalharão ao lado do presidente nos próximos meses (veja a lista completa aqui). Também houve a suspensão imediata de um conjunto de políticas implementadas no governo Bolsonaro, com destaque para as direcionadas à gestão armamentista. Aqueles sigilos de 100 anos? Ficam para depois que a Controladoria Geral da União identificar quais são interessantes.
Quem tem, tem medo
As Forças Armadas não gostaram de ouvir as intenções de Lula de dar transparência às medidas do governo não reeleito de Jair Bolsonaro. De acordo com Malu Gaspar, há o temor de que dados sobre a fabricação de cloroquina pelo Exército, os voos oficiais em aviões da FAB e o processo aberto contra o general e ex-ministro Eduardo Pazuello possam causar danos à corporação. Foda.
Federaliza
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PCdoB), defendeu que se federalizasse as investigações do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e do seu motorista, Anderson Gomes. Ambos foram mortos a tiros no centro do Rio de Janeiro (RJ) em 14 de março de 2018. Segundo Dino, a solução do caso é uma “questão de honra do Estado brasileiro”.
Alinhamentos
Após um ministro defender a revisão da reforma da Previdência — e ser desautorizado por Rui Costa (Justiça), outro ministro defender o fim do saque-aniversário do FGTS, uma ministra afirmar que pautas sobre o aborto no Congresso teriam mais retrocessos do que avanços (causando mal estar no Senado) e o futuro presidente da Petrobras se atrapalhar ao falar da política de preços da estatal, o presidente Lula resolveu tomar as rédeas da sua comunicação.
A primeira reunião ministerial de seu governo, um evento que muitas vezes é apenas protocolar, se tornou um lugar para enquadrar auxiliares e alinhar declarações. A partir de agora, qualquer anúncio e/ou sugestão de política pública deve sair com o aval do Planalto. Para além da redução do desgaste político, a medida também foi tomada para reduzir as chances de Rui Costa se intoxicar com a ingestão de remédios para dor de cabeça.
Girl power
A cerimônia de posse de Marina Silva foi uma das mais disputadas do Planalto. Com aproximadamente 2 mil pessoas, a nova ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima homenageou lideranças mortas em defesa do meio ambiente e criticou a gestão ambiental do governo Bolsonaro em seu primeiro discurso no cargo. Corretamente, Marina apontou que “boiadas se passaram no lugar onde apenas deveriam se passar políticas de proteção ambiental”.
A cerimônia de posse da nova ministra do Planejamento e Orçamento, Tebet, foi menos disputada do que a de Marina Silva, mas não menos digna de nota. Tebet contou história, fez piada, cometeu gafe e disse que há sim divergências com a equipe econômica do governo — mas que isso não será um problema. Até a “liberal por inteiro” Elena Landau esteve presente, recebendo convite para participar do governo e negando como se nega um convite para um cargo que não é o desejado.
Pequenas notas do Quinto dos Infernos
Lula restabeleceu as políticas públicas de combate ao desmatamento em todos os biomas brasileiros e o Fundo Amazônia.
O ministro da Defesa, José Múcio Monteira, tomou posse afirmando que os atos em quartéis são legítimos e que a sua cúpula militar foi escolhida pela internet.
Já Fernando Haddad (Fazenda) prometeu nova regra fiscal para os próximos meses, avaliou um ajuste das contas públicas e falou em terra arrasada.
Gilmar Mendes determinou que a Polícia Federal apreendesse mais três armas da deputada federal Carla Zambelli (PL-SP). Vai ficar ainda mais difícil para ela perseguir homem negro de esquerda nas ruas de Sao Paulo.
Jair Bolsonaro só ganhará R$ 39,2 mil do Partido Liberal e moradia de graça caso volte para o Brasil.
Nísia Trindade (Saúde) prometeu revogar normas instauradas no governo derrotado nas eleições de 2022 que ofendam a ciência, os direitos humanos e os direitos sexuais reprodutivos.
O novo ministro da Fazenda precisa ter mais calma ao lidar com o jornalismo brasileiro.
A prefeitura de Belo Horizonte (MG) desmontou um dos acampamentos golpistas de maior duração do Brasil.
Bolsonaro quer
fugirmorar na Itália.O partido do senador Sergio Moro não fará oposição ao Governo Federal.
Normar I
O governo de Lula não precisou de três dias para ter a sua primeira crise. A ministra do Turismo, Daniela Carneiro, é superiora do novo presidente da Embratur, Marcelo Freixo (PSB-RJ) e também é uma carioca com ligações com o ex-PM Juracy Alves Prudência, acusado de comandar uma milícia na Baixada Fluminense. A região é reduto eleitoral da ministra e de seu marido, o prefeito de Belford Roxo, Waguinho.
Jucary Alves, também conhecido como Jura, chegou a participar de atos de campanha de Daniela em 2018, quando ainda cumpria pena em regime aberto por homicídio e associação criminosa. Na época, a ministra afirmou que o ex-PM era “uma liderança”. Em sua defesa, Daniela afirmou que o recebimento de apoio político não deve ser tratado como um apoio aos crimes pelos quais o ex-PM foi condenado — ainda que seja prática comum que a milícia troque voto pela legitimação de suas atividades criminosas.
Normar II
Diante das acusações, Flávio Dino botou panos quentes na história e afirmou que “político tira foto com todo mundo” — o que seria uma ótima justificativa caso Daniela tivesse “apenas” tirado foto com um acusado de envolvimento com a milícia carioca. Lula, pelo visto, também concorda com a medida, já que indicou a pessoas próximas que não vê elementos que a “desabonem pessoalmente” e que ela está sendo vítima de “fogo amigo”.
Normar III
Apesar de jurar que não deve nada para ninguém, Daniela apagou as suas fotos com acusados — ou condenados — de envolvimento com milícias em redes sociais. Já o União Brasil passou a jurar que a sua indicação foi uma escolha de Lula. Enquanto isso, a bancada do partido na Câmara afirmou que não é representada pela ministra.
De toda forma, o fato é que a ministra de Lula é ligada a um grupo político muito pouco afeito ao Estado de Direito.
Cosplay de prevaricação
As tentativas de desmonte do acampamento bolsonarista no Distrito Federal que estavam previstas para o mês de dezembro foram empurradas para janeiro. No entanto, as operações foram suspensas pois o Exército, ao menos duas vezes, estava com medo de ter que bater em gente branca.
Se o objetivo das Forças Armadas era mostrar apoio aos golpistas, deu certo. Os bolsonaristas aumentaram a sua presença na capital da República dizendo que o foco não era mais Jair Bolsonaro. A articulação foi feita pelas redes sociais sem ninguém mostrar a cara.
Micareta golpista I
As vivandeiras resolveram alçar voo na tarde de domingo (08), atacando as sedes dos Três Poderes sob o olhar complacente da Polícia Militar do Distrito Federal e das forças de segurança auxiliares. Os grupos criminosos marcharam da frente do QG do Exército, tomaram a Praça dos Três Poderes, depredaram o Congresso Nacional, tentaram atear fogo no Palácio do Planalto e roubaram itens do Supremo Tribunal Federal. Houve até roubo de armas do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
Micareta golpista II
A polícia só agiu após o Governo Federal decretar intervenção na capital federal acusando as autoridades do DF de terem “incompetência, má vontade ou má-fé” (a redação aposta que as alternativas não são excludentes). Lula também apontou que Bolsonaro é o responsável por tudo (o que não é mentira). Pelo menos com todo mundo concentrado em Brasília fica mais fácil efetuar as prisões de quem estava espalhado pelo país.
Tudo isso dito, resta saber se o ministro da Defesa ainda considera as manifestações legítimas e se ele mantém a sua palavra de que os grupos golpistas “vão se esvair” em breve. Na hora que perder o cargo não adianta fazer como o governador do DF e gravar video pedindo desculpas (eles não funcionam).
Desafios
Nenhum governo escolhe qual será a sua missão, ainda que muitos políticos tentem isso ao ganharem um cargo no poder Executivo. FHC assumiu a presidência querendo acabar com o legado de Getúlio Vargas, mas passou a maior parte do tempo estabilizando o real. Lula queria combater a fome, uma chaga da sociedade brasileira que só foi possível de se ver como algo do passado no primeiro governo Dilma.
As cenas do último domingo mostram que o grande desafio de Lula será restaurar a democracia e desmobilizar todas as forças golpistas que tentarão desestabilizar o seu governo. Não seria uma tarefa difícil se não estivéssemos em um país em que as instituições funcionam aos trancos e barrancos. O movimento extremista do último final de semana foi naturalizado por todo tipo de força, das que cuidam da segurança pública às que se dizem a favor da liberdade.
A única surpresa, até agora, é que os impactos das ações dos golpistas tenham envolvido o patrimônio público. Restaurar o Palácio do Planalto será troco de bala quando olharmos para o custo que será cobrado na recuperação da democracia liberal república brasileira, que sempre foi pouco democrata, pouco liberal e pouco republicana.